Pepe Escobar:
A luta é de vida ou morte; porque Lula é Brics
"Brics" é a sigla mais amaldiçoada no eixo Avenida Beltway
[onde ficam várias instituições do governo dos EUA em Washington]-Wall Street,
e por razão de peso: a consolidação do Brics é o único projeto orgânico, de
alcance global, com potencial para afrouxar a garra que o Excepcionalistão
mantém apertada no pescoço da chamada "comunidade internacional".
Pepe Escobar*, no Russia Today
Primeira cúpula em
Ecaterimburgo, na Rússia: Lula (Brasil), Medviedev (Rússia), Hu Jin Tao (China)
e Manmohan Singh (Índia), no encontro realizado em junho de 2009
Assim
sendo, não é surpresa que as três potências chaves do Brics estejam sendo
atacadas simultaneamente, em várias frentes, já faz algum tempo. Contra a
Rússia, a questão é a Ucrânia e a Síria, a guerra do preço do petróleo, o
ataque furioso contra o rublo e a demonização ininterrupta da tal
"agressão russa". Contra a China, a coisa é uma dita "agressão
chinesa" no Mar do Sul da China e o (fracassado) ataque às Bolsas de
Xangai/Shenzhen.
O Brasil é o elo mais fraco dessas três potências emergências crucialmente importantes.
Já no final de 2014 era visível que os suspeitos de sempre fariam qualquer
coisa para desestabilizar a sétima maior economia do mundo, visando a uma boa
velha 'mudança de regime'. Para tanto criaram um coquetel político-conceitual
tóxico ("ingovernabilidade"), a ser usado para jogar de cara na lama
toda a economia brasileira.
Há incontáveis razões para o golpe, dentre elas: a consolidação do Banco de
Desenvolvimento do Brics; o impulso concertado entre os países Brics para
negociarem nas respectivas moedas, deixando de lado o dólar norte-americano e
visando a construir outra moeda global de reserva que tome o lugar do dólar; a
construção de um cabo submarino gigante de telecomunicações por fibra ótica que
conecta Brasil e Europa, além do cabo Brics, que une a América do Sul ao Leste
da Ásia – ambos fora de qualquer controle pelos EUA.
E acima de tudo, como sempre, o desejo pervertido obcecado do Excepcionalistão:
privatizar a imensa riqueza natural do Brasil. Mais uma vez, é o petróleo.
Peguem esse Lula, ou...
WikiLeaks já expôs há muito tempo, em 2009, o quanto o Big Oil estava ativo no
Brasil, tentando modificar, servindo-se de todos os meios de extorsão, uma lei
proposta pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, conhecido também como
Lula, que estabelece que a estatal Petrobrás (lucrativa) será a única operadora
de todas as bacias de petróleo no mar, da mais importante descoberta de
petróleo desse jovem século 21: as reservas de petróleo do pré-sal.
Lula não só deixou à distância o Big Oil – especialmente ExxonMobil e Chevron
–, mas também abriu a exploração do petróleo no Brasil à Sinopec chinesa –
parte da parceria estratégica Brasil-China (Brics dentro de Brics).
O inferno não conhece fúria maior que a do Excepcionalistão descartado. Como a
Máfia, o Excepcionalistão nunca esquece; mais dia menos dia Lula teria de
pagar, como Putin tem de pagar por ter-se livrado dos oligarcas cleptocratas
amigos dos EUA.
A bola começou a rolar quando Edward Snowden revelou que a Agência de Segurança
Nacional dos EUA (ing. NSA) andava espionando a presidenta do Brasil, Dilma
Rousseff, e vários altos funcionários da Petrobrás. Continuou com o fato de que
a Polícia Federal do Brasil coopera, recebe treinamento e/ou são controladas de
perto por ambos, o FBI e a CIA (sobretudo na esfera do antiterrorismo). E
prosseguiu via os dois anos de investigações da Operação Lava Jato, que revelou
vasta rede de corrupção que envolve atores dentro da Petrobrás, as maiores
empresas construtoras brasileiras e políticos do partido governante Partido dos
Trabalhadores.
A rede de corrupção parece ser real – mas com "provas" quase sempre
exclusivamente orais, sem nenhum tipo de comprovação documental, e obtidas de
trapaceiros conhecidos e/ou neomentirosos seriais que acusam qualquer um de
qualquer coisa em troca de redução na própria pena.
Mas para os Procuradores encarregados da Operação Lava Jato, o verdadeiro
negócio sempre foi, desde o início, como envolver Lula em fosse o que fosse.
Entra o neo-Elliott Ness tropical
Chega-se assim à encenação espetacularizada, à moda Hollywood, na 6ª-feira
passada em São Paulo, que disparou ondas de choque por todo o planeta. Lula
"detido", interrogado, humilhado em público (comentei esses eventos
em"Terremoto no Brasil").
O Plano A na blitz à moda Hollywood contra Lula era ambicioso movimento para
subir as apostas; não só se pavimentaria o caminho para o impeachment da
presidenta Dilma Rousseff (que seria declarada "culpada por
associação"), como, também, já se neutralizaria Lula, impedindo-o de
candidatar-se à presidência em 2018. E não havia Plano B.
Como não seria difícil prever que aconteceria – e acontece muito nas
'montagens' do FBI – toda a 'operação' saiu pela culatra.
Lula, em discurso-aula, master class em matéria de discurso político,
reproduzido ao vivo por todo o país pela internet, não só se consagrou como
mártir de uma conspiração ignóbil, mas, mais que isso, energizou suas tropas de
massa. Até respeitáveis vozes conservadoras condenaram o show à moda Hollywood,
de um ministro da Suprema Corte a um ex-ministro da Justiça, que serviu a
governo anterior aos do Partido dos Trabalhadores, além do conhecido professor
e economista Bresser Pereira (um dos fundadores do PSDB, que nasceu como
partido da social-democracia do Brasil, mas virou a casaca e é hoje defensor
das políticas neoliberais do Excepcionalistão e lidera a oposição de direita).
Bresser disse claramente que a Suprema Corte deveria intervir na Operação Lava
Jato para impedir novos abusos. Os advogados de Lula, por sua vez, requereram à
Suprema Corte que detalhasse a jurisprudência que embasaria as acusações
assacadas contra Lula. Mais que isso, um advogado que teve papel de destaque na
blitz hollywoodiana disse que Lula respondeu a tudo que lhe foi perguntado
durante o interrogatório de quase quatro horas, sem piscar – eram as mesmas
perguntas que já lhe haviam sido feitas antes.
O professor e advogado Celso Bandeira de Mello, por sua vez, foi diretamente ao
ponto: as classes médias altas no Brasil – nas quais se reúnem quantidades
estupefacientes de arrogância, ignorância e preconceito, e cujo maior sonho de
toda uma vida é alcançar um apartamento em Miami – estão apavoradas, mortas de
medo de que Lula volte a concorrer à presidência – e vença – em 2018.
E isso nos leva afinal ao juiz mandante e carrasco executor de toda a cena:
Sergio Moro, protagonista de "Operação Lava Jato".
Ninguém em sã consciência dirá que Moro teve carreira acadêmica da qual alguém
se orgulharia. Não é de modo nenhum teoricista peso pesado. Formou-se advogado
em 1995 numa universidade medíocre de um dos estados do sul do Brasil e fez
algumas viagens aos EUA, uma das quais paga pelo Departamento de Estado, para
aprender sobre lavagem de dinheiro.
Como já comentei, a chef-d’oeuvre da produção intelectual de Moro é artigo
antigo, de 2004, publicado numa revista obscura, nos idos de 2004
("Considerações sobre Mãos Limpas", revista CEJ, n. 26, julho-Set.
2004), no qual claramente prega a "subversão autoritária da ordem judicial
para alcançar alvos específicos" e o uso dos veículos de mídia para
envenenar a atmosfera política.
Quer dizer, o juiz Moro literalmente transpôs a famosa operação da Justiça
italiana de 1990 Mani Pulite ("Mãos Limpas") da Itália para o seu
próprio gabinete – e pôs-se a instrumentalizar os veículos da grande mídia
brasileira e o próprio judiciário, para alcançar uma espécie de
"deslegitimação total" do sistema político. Mas não quer deslegitimar
todo o sistema político: só quer deslegitimar o Partido dos Trabalhadores, como
se as elites que povoam todo o espectro da direita no Brasil fossem querubins.
Assim sendo, não surpreende que Moro tenha contado com a companhia solidária,
enquanto se desenrolava a Operação Lava Jato, do oligopólio midiático da
família Marinho – o império midiático O Globo –, verdadeiro ninho de
reacionários, nenhum deles particularmente inteligente, que mantiveram íntimas
relações com a ditadura militar que, no Brasil, durou mais de 20 anos.
Não por acaso, o grupo Globo foi informado sobre a "prisão" hollywoodiana
que Moro aplicaria ao presidente Lula antes de a operação começar, e pode
providenciar cobertura que efetivamente tudo encobriu, ao estilo CNN.
Moro é visto por muitos no Brasil como um sub Elliot Ness nativo. Advogados que
têm acompanhado o trabalho dele dizem que o homem cultiva a imagem de que o
Partido dos Trabalhadores seria uma gangue que viveria a sanguessugar o
aparelho do Estado, com vistas a entregar tudo, em cacos, aos 'sindicatos'.
Segundo um desses advogados, que falou com a mídia independente no Brasil,
ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Moro é cercado por um punhado
de Procuradores fanáticos, com pouco ou nenhum saber jurídico, que fazem pose
de Antonio di Pietro (mas sem a solidez do Procurador milanês que trabalhou na
Operação Mãos Limpas).
Ainda pior, Moro não dá sinais de preocupar-se com a evidência de que depois
que o sistema político italiano implodiu, ali só prosperaram os Berlusconi. No
Brasil, certamente se veria a ascensão ao poder de algum palhaço/idiota de
bairro, elevado ao trono pela Rede Globo – cujas práticas oligopolistas já são
bastante berlusconianas.
Pinochets digitais
Pode-se dizer que a blitz à moda Hollywood contra Lula guarda semelhanças
diretas com a primeira tentativa de golpe de Estado no Chile, em 1973, que
testou as águas em termos de resposta popular, antes do golpe real. No remix
brasileiro, jornalistas globais fazem as vezes de Pinochets digitais. Mas as
ruas em São Paulo já mostram graffiti que dizem "Não vai ter golpe" e
"Golpe militar – nunca mais."
Sim, porque tudo, nesse episódio tem a ver com um golpe branco – sob a forma de
impeachment da presidenta Rousseff e com Lula atrás das grades. Mas velhos
vícios (militares) são duros de matar: vários jornalistas próximos da Rede Globo
e ativos agora na Internet já 'conclamaram' os militares a tomar as ruas e
"neutralizar" as milícias populares. E isso é só o começo. A direita
brasileira está organizando manifestações para o próximo domingo, exigindo – e
o que mais exigiriam? – o impeachment da presidenta.
A Operação Lava Jato teve o mérito de investigar a corrupção, a colusão e o
tráfico de influência no Brasil, país no qual tradicionalmente a corrupção
corre solta. Mas todos, todos os políticos e todos os partidos políticos teriam
de ser investigados – inclusive e sobretudo – porque em todos os casos esses
são corruptos conhecidos há muito tempo! – os representantes das elites
comprador brasileiras. A Operação Lava Jato não opera igualmente contra todos.
Porque o projeto político aliado aos Procuradores do juiz Moro absolutamente
não está interessado em fazer "justiça"; a única coisa que interessa
a eles é perpetuar uma crise política viciosa, como meio para fazer fracassar a
7ª maior economia do mundo, para, com isso, alcançarem seu Santo Graal: ou
aquela velha suja 'mudança de regime', ou algum golpe branco.
Mas 2016 não é 1973. Hoje já se sabe quem, no mundo, é doido por golpes
para mudar regimes.
*Jornalista brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas
publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também
analista de política de blogs e sites como: Sputnik, Tom Dispatch, Information
Clearing House, Rede Voltaire e outros; é correspondente/articulista das redes
Russia Today e Al-Jazeera.
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu